terça-feira, 10 de junho de 2014

Quanto mais democracia, melhor



Um fantasma ronda o Brasil: o fantasma da democracia participativa. Após a edição do Decreto n. 8.243, em 23 de maio deste ano, que instituiu uma “Política Nacional de Participação Social”e um “Sistema Nacional de Participação Social”, estranhamente, uma chuva de críticas foi dirigida ao Governo Federal. Acusam Dilma de enveredar pelo bolivarianismo.

O Decreto visa "articular os mecanismos e as instâncias democráticas de diálogo e a atuação conjunta entre a administração pública federal e a sociedade civil”(art. 1o).

Pelo que vi, o Decreto apenas organiza um conjunto de meios de participação que, na prática, já existem e, com isso, permite que áreas nas quais existe pouca participação aprendam com a experiência de áreas, como a saúde, nas quais há já uma longa experiência de participação.

Prevê o Decreto, como órgãos do Sistema: "I - conselho de políticas públicas; II - comissão de políticas públicas; III - conferência nacional; IV - ouvidoria pública federal; V - mesa de diálogo; VI - fórum interconselhos; VII - audiência pública; VIII - consulta pública; e IX - ambiente virtual de participação social.” Os três primeiros são dirigidos à discussão/formulação da própria política de participação. A ouvidoria já existia, na estrutura da Controladoria Geral da União. No Governo Federal existem mais de cem ouvidorias. Mesas de diálogo já são práticas comuns em vários órgãos e políticas públicas. Audiências públicas e consultas públicas estão previstas em diversas leis e, mesmo quando não expressamente previstas, já funcionam como instrumentos para aperfeiçoamento de políticas em construção. Fóruns interconselhos são recomendáveis. Como qualquer um sabe, há um número enorme de conselhos funcionando na Administração - na União e nos Estados e Municípios. Como diferentes políticas públicas podem ter implicações recíprocas (por exemplo, um programa de saúde nas escolas), é bom que existam canais institucionalizados para o diálogo entre os conselhos que participam de suas formulações. Ambientes virtuais de participação nada mais é que o aproveitamento do potencial enorme que a internet tem, para permitir mais vozes na formulação de políticas.

A celeuma criada por alguns revela que há um medo difuso de instrumentos de democracia direta em certos partidos políticos e setores da mídia.

Ao contrário dos críticos do Decreto, acho que a organização, em um instrumento normativo, das diversas formas de participação aperfeiçoa a democracia. Precisamos de mais democracia, de uma Administração mais infiltrada pela participação popular.

A Constituição de 1988 trouxe o que alguns chamam de uma “democracia semi-direta”. O Parágrafo único do Art. 1o define: "Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”. Infelizmente, poucas vezes, desde 1988, os instrumentos de democracia direta previstos na Constituição foram utilizados. Temos uma prática de consulta direta ao povo menor do que, por exemplo, os Estados Unidos.

Outras formas de participação da sociedade na tomada de decisões importantes para a Administração foram sendo introduzidas, para o bem de nossa democracia. Um exemplo elogiável é a prática, bastante difundida nos municípios, de construção participativa dos orçamentos. O orçamento participativo não está previsto na Constituição. A responsabilidade pela construção do Projeto de Lei Orçamentária continua do Chefe do Executivo, que o encaminha ao Legislativo. No entanto, ele divide a tarefa com a sociedade civil, por meio de plenárias e conferências, deixando abertos canais de participação. Ouve, mas continua com o poder de enviar a proposta ao Legislativo.

A Constituição traz já, em algumas áreas, deveres específicos para o Executivo de abertura de sua atividade à participação popular.

Na Seguridade Social - conceito que inclui Saúde, Previdência Social e Assistência Social - a Constituição deixou já institucionalizada a necessidade da participação de entidades da sociedade civil na Administração. O parágrafo único do art. 194, que institui objetivos da Seguridade Social, prevê "caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados.”. O art. 198, III, da Constituição, inclui a "participação da comunidade” como uma das diretrizes do Sistema Único de Saúde. O art. 204, II, da mesma forma, consagra a "participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis” como uma diretriz da Assistência Social.

O Sistema Nacional de Cultura, previsto no art. 216-A - introduzido pela Emenda Constitucional n. 71/2012 - prevê como um dos seus princípios de organização a "democratização dos processos decisórios com participação e controle social”.

Caberia, aqui, o absurdo argumento de que a participação da sociedade civil organizada na Administração apenas estaria autorizada onde expressamente o constituinte a previu? Quando a participação não estaria prevista na Constituição, estaria proibida? Não vejo qualquer fundamento nesse raciocínio.

Ao ouvir a sociedade civil organizada, ao abrir à maior participação, o Executivo não altera qualquer elemento do esquema organizatório funcional previsto na Constituição. Tal qual a prática do orçamento participativo, O Presidente continua com os mesmos poderes. Será ele que, no comando da Administração federal, dará a última palavra sobre o agir do Executivo. O Legislativo não é atingido em nada.


Aliás, é bom lembrar que, no Império, eram regulares as audiências nas quais Dom Pedro II ouvia reclamações de populares contra órgãos públicos. Seria o Rei um percursor do bolivarianismo? Paciência!


Gustavo Ferreira Santos-Professor de Direito Constitucional da UFPE.

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