domingo, 9 de fevereiro de 2014

O carnaval da lei e ordem do Recife

No dia 13 de fevereiro de 2013, na manhã da quarta-feira de cinzas, fiz o seguinte post no meu facebook:
Às 06:10 da manhã, saiu o arrastão do Marco Zero. Sem dúvidas, o melhor momento do carnaval. Orquestra gigante, gente que parecia que nem tinha brincado 4 dias e, claro, todos bêbados e felizes. Incrivelmente, os gritos de “ah, é Pernambuco”, não paravam. Às 7:30, chegou a hora de partir. O homem da corneta já não aguentava mais. Uns resistentes permaneceram. 
Foi-se mais um carnaval.
Hoje, às vésperas do carnaval de 2014, boêmios de todo mundo recebem a notícia de que a prefeitura e órgãos de segurança pública, seguindo recomendação do MPPE, decidiram que a folia momesca terá horário para terminar: 2 horas da madruga.
Jaguar, que ultimamente confessou ter sido corneado pelo seu fígado, no livro “Confesso que bebi”, reclamava sobre a possibilidade de a prefeitura retirar as mesas das calçadas (ops, qualquer semelhança com certa vereadora é mera coincidência…) e proibir a abertura dos bares até determinado horário, como diz ele, “apaulistar o Rio”: “Dá pra entender? Faz lembrar aquela marchinha de carnaval: “nós é que bebemos e eles que ficam tontos”. Por que não aproveitam esse frenessi persecutório e proíbem celulares e televisão – invasiva poluição sonora – em bares e restaurantes?“.
frenessi persecutório de Jaguar chegou à capital pernambucana. Parafraseando Jaguar, estou me sentindo corneado pelo carnaval recifense. Nosso orgulho sempre foi ter o carnaval mais livre, democrático e plural do Brasil.
Essa medida pode ser um primeiro passo para o início de medidas drásticas para a nossa festa. O Recife, aos poucos, vai deixando de ser Recife.
Se for para falar de ordem, Ministério Público, bem que poderia começar por recomendações mais importantes para o espaço (e o cofre) público: i) contra o alto gasto na manutenção de camarotes, como se fosse dever do poder público proporcionar uma folia gorda aos políticos e aos seus amigos; ii) contra a instalação de “front stage” gigante para a casta política e cultural de plantão nos palcos da cidade; iii) por alternativas dignas para crianças que acompanham os pais trabalhadores, normalmente catadores de latinha, durante o carnaval; iv) pelo preparo da polícia militar para lidar com eventos de massa e, para quem lembra do carnaval retrasado, com todas as formas de amor.
Queiram ou não queiram os juízes
É claro que esse debate pode partir para outra perspectiva: o impacto sobre o Direito à Cidade. Pode não parecer, mas o limite imposto pela prefeitura gera uma discussão muito séria sobre os rumos da nossa urbe. O que está em jogo, na verdade, é a política da lei e ordem em detrimento das manifestações culturais. É um conflito entra a lógica de cidade confinada, que se fecha em si mesmo, e uma cidade que permite a sua reinvenção.
Vivemos numa cidade agressiva, em todos os sentidos. Dos prédios da Moura Dubeux, rodeando nossa capital, aos carros enfurecidos, acelerando nas nossas ruas; das calçadas cheias de buraco para pedestres e cadeirantes, às pontes constantemente ameaçadas pelo medo do assalto; dos shoppings – cheios de artificialidade – lotados, às praças – cheias de árvores – vazias. Em todos esses locais, “o elemento humano é achatado”, como dizem num desses filmes cabeça da capital pernambucana.
O carnaval é um dos poucos espaços – embora existam os cordões de isolamento simbólicos – em que a cidade se encontra consigo mesma. O morador de Casa Forte esbarra no morador de Peixinhos no meio do Marco Zero. Um carnaval livre e democrático permite a liberação das tensões sociais. Não à toa, dizem que o carnaval de Salvador, cheio de cordões de isolamento – que projetamos como o oposto do nosso – é um dos mais violentos do país.
O horário de limite imposto pela prefeitura do Recife, aliado à proibição de blocos tradicionais nos mercados públicos, impacta na dinâmica da cidade, principalmente, de uma cidade como Recife, marcada, ao menos no carnaval, por espaços de socialização abertos. Pode gerar como resultado rebote da medida – intencionalmente ou não – um efeito potencializador dos espaços privados: as famosas festas particulares, que não terão limites de horário.
Nesse aspecto, o tema merece um pequeno aparte. Essas festas privadas, ou boa parte delas, refletem uma lógica de cidade marcada por profundas desigualdades. A busca incessante por espaços exclusivos, no fundo, é a busca por espaços de diferenciação, de não mistura, de elitização. É a lógica das cidades privadas, dos castelos neofeudais, dos condomínios fechados, reverberando na dinâmica dos espaços de diversão, lazer e cultura. Essa lógica talvez simbolize a segregação e fragmentação típicas de uma concepção excludente de espaço urbano.
Infelizmente, esse é o modelo que parece desenhado para a nossa cidade: o poder econômico, aliado às diversas esferas do Estado, ditam as regras de ocupação, criam espaços de exclusão e expulsam as comunidades do centro – do poder e da cidade.

No entanto, o desenho pode ser reformulado. Recife vive um momento fértil de
discussão sobre o espaço urbano e um efeito contrário pode surgir: o incremento das lutas, em nossa cidade, pela reinvenção do espaço urbano também no carnaval. Essas limitações impostas pelo poder público, às vésperas da folia e sem nenhum diálogo com o conjunto da sociedade, podem dinamizar novas e criativas formas de reinvenção do carnaval. Tal como no Rio, onde os blocos estão saindo à revelia da prefeitura, independente de autorização, mas com aviso prévio (aliás, exatamente único requisito exigido pela Constituição), as festas podem surgir espontaneamente nas ruas, com batuques, sons e qualquer outra ideia que surja das cabeças dos brincantes.


Não podemos deixar que o nosso carnaval fique como os nossos governantes: sem graça, vestidos com ternos escuros, tomando whisky em algum restaurante de Boa Viagem. É esperar que a criatividade do nosso povo, esta sim que nunca mostrou limites, inunde as ruas do umbigo do mundo e mostre que carnaval é assim: anárquico, que não arbitrariamente domado ou domesticado pelo poder público. Resgatar a beleza e a leveza do carnaval, para muito além de gestões governamentais, é principal papel da sociedade civil.
Dessa forma, ficar durante o carnaval na madrugada recifense não será apenas um ato de boemia, mas uma verdadeira resistência cultural. Enquanto isso, Seu Prefeito, Governador, membros do MPPE, secretário de Defesa Social, Eduardo Galeano tem um recado para vocês:
“Na parede de um botequim de Madri, um cartaz avisa: Proibido cantar. Na parede do aeroporto do Rio de Janeiro, um aviso informa: É proibido brincar com os carrinhos porta-bagagem. Ou seja: Ainda existe gente que canta, ainda existe gente que brinca.”

Pedro Brandão
Mestre em Direito/PPGD-UFPE
Assessor Parlamentar e Militante do Partido Socialismo e Liberdade. 

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