quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Abuso de princípios no Supremo Tribunal Federal

 

Não há nada no texto sobre a teroria do domínio do fato, mas dá a dimensão da pobreza intelectual dos ministros do STF.
 
 
 
 
 
 
Um ministro do Supremo Tribunal Federal, em voto memorável, no julgamento, em 26 de maio de 2011, da ADI 1.856/RJ (DJe 14/10/2011), em que se declarou a inconstitucionalidade de lei estadual autorizadora da briga de galo com base no artigo 225, parágrafo 1º, inciso VII, da Constituição Federal, afirmou: “A briga de galo ofende [...] a dignidade da pessoa humana porque, na verdade, ela implica de certo modo um estímulo às pulsões mais primitivas e irracionais do ser humano [...]. A proibição também deita raiz nas proibições de todas as práticas que promovem, estimulam e incentivam essas coisas que diminuem o ser humano como tal e ofende, portanto, a proteção constitucional, a dignidade do ser humano.”
 
 
Foi elogiado em seu voto esdrúxulo e despropositado (o caso já estava sendo solucionado com base no artigo 225, parágrafo 1º, inciso VII, da Constituição Federal) por dois outros ministros. Entretanto, esse exemplo permanece no plano do folclore jurídico supremo.
 
 
Uma situação que deve ser levada mais a sério, por suas implicações potencialmente danosas, ocorreu mais recentemente, no julgamento da ADI 4.638/DF, em 2 de fevereiro de 2012, referente às competências do Conselho Nacional de Justiça. O apelo à dignidade da pessoa humana e à autoridade de Dworkin para justificar a manutenção de dispositivos da Loman que impunham o julgamento secreto dos magistrados (Lei Complementar 35/1979, artigo 27, parágrafos 2º e 6º, artigos 45, artigo 52, parágrafo 6º, artigo 54 e artigo 55) em contraposição a regras constitucionais claras, introduzidas pela Emenda Constitucional 45/2004 (Constituição Federal, artigo 93, incisos IX e X).
 
 
Dessa maneira, a inferência natural seria a seguinte: a dignidade da pessoa humana pertence aos magistrados, não aos cidadãos comuns, julgados publicamente.
 
Outro caso cujas consequências poderiam ter sido desastrosas, pois teria possibilitado a eventual instauração de processo penal contra a então corregedora do CNJ, ministra Eliana Calmon, diz respeito ao MS 31.085/DF. É surpreendente que um ministro do STF tenha concedido liminar, em 19 de dezembro de 2011 (revogada por outro ministro em 29/02/2012), admitindo, preliminarmente, que teria havido quebra do sigilo bancário no ato em que a Corregedoria Nacional de Justiça solicitou, para facilitar a estratégia investigatória, informações genéricas ao Coaf sobre movimentações financeiras atípicas no universo de cerca de “216.000 servidores e magistrados”, sem identificação de nome.
 
Dessa maneira, deu-se um caráter principiológico à exigência do sigilo bancário, desconsiderando que a regra legal é clara no sentido de que a quebra do sigilo bancário envolve a “identificação dos titulares das operações”. Trata-se de um tipo penal, que não pode ser ampliado arbitrariamente. E extinguir o Coaf com base nessa princiopiologia, como insinuou outro ministro, é desviar-se de acordos internacionais em que o Brasil se comprometeu a lutar contra a lavagem de dinheiro e a criminalidade financeira em geral.
 
Em outras situações, prevalece uma clara inconsistência do STF em relação à aplicação dos princípios. No caso Ellwanger (HC 82.424/RS, julg. 17/11/2003, DJ 19/03/2004), por exemplo, negou-se caráter absoluto à liberdade de expressão para afirmar a prevalência do princípio da dignidade da pessoa humana, conforme um modelo de sopesamento. Já no julgamento da ADPF 130/DF (julg. 30/04/2009, DJe 06/11/2009), prevaleceu, nos termos do voto do relator, a tese com essa incompatível, ou seja, a de que a liberdade de expressão não é norma-princípio e, portanto, não é sopesável.
 
Por seu turno, observe-se que esta decisão, ao declarar a Lei 5.250/1967 (Lei de Imprensa) inteiramente não recepcionada pela ordem constitucional de 1998, com base no argumento de que ela fora editada no período autoritário, mostrou-se contraditória, pois remeteu a solução dos conflitos referentes à liberdade de expressão e de imprensa ao CPC, aprovado em 1973, no período mais autoritário do regime militar, assim como CP e o CPP, ambos originários do Estado Novo.
 
Antes, caberia sempre observar quais os dispositivos seriam compatíveis com a nova ordem, especialmente aqueles que, naquela Lei de Imprensa, pudessem servir para a defesa dos cidadãos contra o poder das organizações empresariais que controlam a imprensa. A liberdade de expressão pertence aos cidadãos, não às organizações midiáticas.
 
Esses casos apontam para a trivialização e a inconsistência no tratamento dos princípios constitucionais por parte do STF. Tal situação de confusão jurisprudencial relaciona-se com o fascínio doutrinário, que se expressa no lugar comum do chamado “neoconstitucionalismo”, ao relacionar os princípios com a democracia e as regras com a postura autoritária.
 
Uma opção mais acentuada por princípios ou regras não tem nenhuma relação com o binômio “democracia/autocracia” ou “constitucionalismo/autoritarismo”. Especialmente quando vinculamos os princípios a modelos axiológicos, teleológicos ou morais. A experiência histórica é contundente a esse respeito. Durante o nacional-socialismo, foram precisamente os juristas que proclamaram a importância de princípios orientados por valores e teleologias, especialmente nos termos da tradição hegeliana, que pontificaram nas cátedras (por exemplo, o festejado Karl-Larenz). Autores ditos “formalistas”, os quais Hauke Brunkhorst relacionou sugestivamente ao “positivismo jurídico democrático”, destacando-se Hans Kelsen, foram banidos de suas cátedras ou não tiveram acesso ao espaço acadêmico.
 
Evidentemente, para o “Führer”, um modelo com ênfase em regras constitucionais e legais seria praticamente desastroso. Uma teoria de princípios referentes ao desenvolvimento do povo alemão na “história universal” como “realização do espírito geral” ou “aprofundamento do espírito do mundo em si” (Hegel) apresentava-se muito mais adequada aos “fins” do nazismo.
 
Mas os exemplos não se restringem à experiência alemã. Também não houve domínio de uma teoria formalista da argumentação jurídica e constitucional no regime militar brasileiro. Miguel Reale, talvez o teórico e filósofo do Direito mais influente no período autoritário, adotava um modelo axiológico nos termos da tradição hegeliana, tendo sido, com base em sua “teoria tridimensional do Direito”, um forte crítico das vertentes ditas “formalistas”.
 
Naquele contexto, não se conteve nas abstrações teóricas, mas argumentou substantivamente, em nome do “realismo objetivo”, a favor do autoritarismo imposto pelos militares em 1964 (cf. Revista de Informação Legislativa, ano 20, nº 77, pp. 57-68). É claro que qualquer modelo rigoroso de regras constitucionais seria inoportuno para um regime político de “exceção”, ou seja, um regime em que as exceções definidas ad hoc para a manutenção da eventual estrutura de dominação constituem a “regra”.
 
O fato de que o autoritarismo distanciou-se de um modelo de regras torna-se mais patente na experiência latino-americana em virtude da falta de consistência ideológica dos regimes, o que tornava imperiosa uma maleabilidade às pressões particularistas de grupos e pessoas, implicando a ruptura casuística das regras por eles mesmos impostas, ao sabor das conveniências políticas concretas.
 
Em 2003, ao retornar ao Brasil após alguns anos de atividade de pesquisa e ensino na Europa, deparei-me com uma ampla recepção do debate em torno de princípios e regras, ponderação e otimização, principiologia, constitucionalização do Direito e temas conexos. Um tanto surpreso, observei que essa linguagem não se restringia à teoria do Direito e da Constituição, mas se espraiava na dogmática jurídica e na prática jurisprudencial, sem limites.
 
Procurei ser atento à discussão. Passei a observar que, salvo algumas exceções, tratava-se, mais uma vez, de importação acrítica de construções teóricas e dogmáticas, sem o crivo seletivo de uma recepção jurídico-constitucionalmente apropriada. Em grande parte, configurava-se a banalização de modelos principiológicos, desenvolvidos consistentemente no âmbito de experiências jurídicas bem diversas da nossa.
 
Por um lado, a invocação aos princípios (morais e jurídicos) apresentava-se como panaceia para solucionar todos os males da nossa prática jurídica e constitucional. Por outro, a retórica principialista servia ao afastamento de regras claras e “completas”, para encobrir decisões orientadas à satisfação de interesses particularistas. Assim, tanto os advogados idealistas quanto os astutamente estratégicos souberam utilizar-se exitosamente da pompa dos princípios e da ponderação, cuja trivialização emprestava a qualquer tese, mesmo as mais absurdas, um tom de respeitabilidade. Isso tudo, parece-me, em detrimento de uma concretização jurídica constitucionalmente consistente e socialmente adequada.
 
Mas a minha posição não se restringe a uma “desmistificação” ou, para usar um termo em voga, a uma “desconstrução” da teoria, da dogmática e da prática jurídicas e constitucionais que, sob a rubrica do princípio, da ponderação, da otimização e de rótulos afins, passou a ser não apenas dominante, mas também sufocante no Brasil da última década. Apesar de tomar como objeto de crítica o abuso de princípios em nossa doutrina e prática jurídico-constitucional, levo a sério os princípios constitucionais, apontando para a sua relação de complementaridade e tensão com as regras.
Os princípios servem para abrir e enriquecer a cadeia argumentativa. Eles envolvem argumentos primariamente substantivos, referentes à adequação social do Direito. Eles têm um caráter reflexivo em relação às regras. Eles atuam em forma de Hidra.
 
 
As regras é que servem ao fechamento da cadeia argumentativa. Envolvem argumentos primariamente formais, referentes à consistência do sistema jurídico. Elas é que têm um caráter hercúleo.
 
 
A relação entre princípios e regras importa, portanto, um paradoxo da busca incessante de um equilíbrio instável entre consistência jurídica e adequação social. O mero principialismo leva a um realismo com capa moral, deixando o Direito afogar-se nos particularismos dos interesses de grupos e pessoas. O puro modelo de regras conduz ao formalismo e à rigidez, tornado o direito insensível aos problemas sociais.
 
 
A rotinização e a trivialização dos princípios na jurisprudência do STF e do Judiciário em geral têm levado a uma metamorfose perigosa para o Estado constitucional: ao abusarem dos princípios, que podem atuar como remédios contra a insuficiência das regras em casos jurídicos e constitucionais controvertidos, transformam-nos em venenos.
 
 
Nesse contexto, os princípios tornam-se “significantes flutuantes” ou “valores simbólicos zero” (Lacan, Lévi-Stauss). Atuam analogamente a estes no xamamismo, no qual, segundo Lévi-Strauss, o valor simbólico zero pode ser aplicado a qualquer situação, comportando todos os sentidos, conforme o contexto do ritual ou da magia.
 
 
Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio).
 
Marcelo Neves é professor titular de Direito Público da Universidade de Brasília. Membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional.

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