quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

A miséria do banquete financeiro da Grécia






1) A Grécia continua a incomodar as finanças. Ou são as finanças que incomodam a Grécia? Sim, porque a salvação da economia grega está embananada. O que está se tratando no caso é da austeridade fiscal, da privatização de bens públicos, dos pagamentos da dívida, das reformas estruturais (obviamente salários, pensões, cortes de despesas públicas, etc.). E também da recapitalização dos bancos locais. E não está sequer em discussão a sociedade grega como um todo. Mas, como diz Wilhelm Buiter, economista conservador, mas de análises seguras, a Grécia ainda precisa achar 320 milhões de euros para completar os novos cortes do mais recente pacote, do mais recente bail-out. O grave, o mais profundamente grave, é que se tudo der certo, a dívida pública ainda estará a 120% do PIB em 2020 – e naturalmente com o PIB caindo. Como se vê, pode-se já ter certeza, se tudo der certo, a Grécia chegará naquele ano na posição que a Itália está hoje. E como sublinha Buiter: sem o alto nível da riqueza privada italiana.

 
2) Mas, a Grécia está em franca decomposição. Porque para conseguir implementar todo o pacote é necessário que haja controle sobre o gasto, sobre o cumprimento dos prazos e sobre o comportamento da máquina pública na colaboração do programa traçado. Para tal, não basta a decisão política. É indispensável uma administração e uma burocracia estatal competente que cumpra as metas acordadas. Todo o movimento da intervenção da Tróica (FMI, BCE e Comissão Européia) está concentrado em estabelecer uma proposta para o saneamento do Estado através de uma definição rigorosa e estrita do orçamento, da gerência sem vacilos do déficit, bem como da vigilância rígida da dívida pública. E a eficiência dessas operações é o que falta para a Grécia. Seguindo a tarefa de reorganização do país, a águia das finanças internacionais procura fazer as ideias da Tróica na direção de resolver a crise fiscal e a crise financeira. E, claro, jogando os encargos e os restos do banquete para o lado da população. E, com isso, provocando desemprego, queda de salários, perda de propriedades, etc. Ou seja, o laboratório da Tróica, junto com Lucas Papademos, primeiro ministro banqueiro, está produzindo e tentando transformar, se tudo correr bem, as crises fiscal e financeira numa profunda crise social.

 
3) (Um dos aspectos pelo qual a crise geral das finanças mundiais não se resolve é porque a política econômica implícita desse setor financeiro, para os diversos países, se baseia na tentativa de tratar tudo financeiramente. Assim, o Estado está em crise, bom, vamos fazer um programa de cortes de gastos, de pagamento dos juros, do controle do déficit e da dívida. É sempre o mesmo ritornello. Dito de outra forma, a sua estratégia é visão financeira e atenção às contas públicas. Mas, não se pensa nada a respeito do investimento público, do investimento privado, do aporte de capital para instalação de indústrias nas sociedades em crise econômica, num sistema bancário público e/ou privado com crédito para a produção. Uma economia só avança socialmente – atenção, estou falando ‘socialmente’ – com o crescimento do PIB e desenvolvimento da condição dos seus cidadãos. E isso só se dá com aumento do investimento e do emprego, com políticas públicas para a população, com acréscimo das receitas, com o aprimoramento do gasto público e com o escalonamento adequado da dívida do Estado. Visto por esse ângulo, a salvação da Grécia é uma devastação. E vem com uma pitada de humor negro: os conservadores dizem e ainda falam da baixa poupança das famílias para recuperar e ajudar na retomada da produção. Como é que as famílias desempregadas, como é que a gente com perda de salário, pode poupar? Não há como não pensar que a ajuda financeira de 130 bilhões de euros não seja um lance das finanças para salvar as próprias finanças sem nenhuma preocupação com o destino da Grécia econômica, política e social!)

 
4) Logo se vê que uma crise social não se resolve do jeito que estão propondo. A insatisfação vai estar sempre presente como ocorre a quem mora numa casa sem telhado. A trajetória da revolta está aí. Enquanto isso, um lado chocante e não sem ácida comicidade, os credores e políticos europeus conclamam os partidos gregos a aprovarem e controlarem a situação. A pergunta inevitável: será isso possível por quanto tempo? E como serão as próximas eleições gregas? Ganhará Antonis Samaras do Partido Nova Democracia, conservador? Fará aliança com os socialistas do Pasok?

 
5) Existem críticos (politólogos e economistas) que falam da possibilidade da União Européia, a certa altura do jogo, excluir dela “a preguiçosa Grécia”, como falam alguns alemães. O governo da Angela Merkel, aliás está oscilando, ora dá indicações que não, ora sussurra que sim. E Wolfgang Schäuble, o ministro das Finanças, afirma que não se deve dar mais nenhum dinheiro para a Grécia. Será um indicativo? Então, se for, será o buraco negro. Ninguém tem ideia do que irá acontecer. Para os gregos, os custos da passagem do euro para o dracma serão enormes, a desvalorização robusta, a evasão de capital absurda, os investimentos, aí sim, desaparecerão. O que não quer dizer que pequenos negócios, uma economia paupérrima não se estabeleça. E a tão falada, desvalorização monetária para que a Grécia possa exportar a preços baratos é uma ideia inútil, pois a Grécia vai exportar o quê? E como se fala em turismo barato, baratíssimo, ele vai dar conta de quê? Mas, a pergunta que é calada e que, no entanto, não se apaga com as exigências financeiras do pacote é a seguinte: como ficará e viverá a população? Ela vai emigrar? E para onde? Todos esses contornos não sevem de combustível para uma explosão social e política?

 
6) Por essas razões, a situação grega só pode ser analisada no contexto da Europa dos capitais. E dos capitais hegemonizados pelas finanças. Pelo menos no estágio atual, não existe união política da Comunidade Européia. O que significa que não existe um Estado Europeu que possa fazer uma política global. O que temos é apenas um espaço europeu, um espaço aberto à capitalização, sobretudo financeira, que tem uma agência econômica, o Banco Central Europeu, que cuida dos capitais e dos bancos. Por exemplo, o BCE pode emprestar para os bancos, mas não para os Estados. Claro, podem se inventar químicas para efetuar esses empréstimos. Todavia, o que domina – e isso é notório há anos – na visão dos Estados nacionais da União Européia é o construto financeiro. Daí que o cuidado da Grécia passa pela Tróica: o FMI, a União Europeia e o Banco Central Europeu. Ela está, então, vê-se claramente, sob os cuidados e a política de uma Europa Financeira.

 
7) Pode se concluir com segurança que a situação da Grécia na atual crise econômica – de conteúdo financeiro e fiscal – desemboca inexoravelmente numa crise social, fato que acentua, exacerba e enfatiza – um escândalo! – a abdicação da Europa Política. Uma Europa Política do desenvolvimento econômico e da distribuição da renda, do estabelecimento do bem estar social e da meta insistente do bem comum. E a ironia da Europa financeira é desprezar a questão do bem comum em relação a um país onde esta ideia nasceu. Aristóteles morreria de vergonha ao ver atingidas, mortalmente, outras noções que ele criou, além dessa. O homem é um animal racional. O homem é um animal político. Essas três idéias foram atiradas na lixeira pelas finanças.

 
8) É, então, a Europa Financeira que faz um projeto político de uma austeridade que liquida a Europa Social. E isto pesa, sobretudo, para os países que foram endividados, como o Estado conservador e corrupto da Grécia anterior a Papandreou. E tudo em aliança com a Goldman Sachs e com a anuência de bancos do continente. Culpa da Grécia, sim; culpa das finanças, também. E com isso teremos a manutenção da Europa Financeira com a hegemonia política do Banco Central (na mão de Mario Draghi, ex-Goldman Sachs), com uma política fiscal austera, com a diminuição de salários, de aposentadorias, etc. tudo em nome da necessidade da estabilidade da economia para a expansão da acumulação financeira. E não esqueçamos que Hobbes corrigia Aristóteles, como fundamento da teoria política, ao dizer que o homem era lobo do homem. E nesse diálogo de todo os tempos, Freud, no “Mal-estar da Cultura”, concordava. Então, leitor indignado, não provoca reflexões essa situação da Grécia, como a de Portugal e da Irlanda?

 
9) Olhando os aspectos atuais desta Europa Financeira constata-se que o Banco Central Europeu está se tornando para o sistema bancário da região – sem ter um Estado por trás – no emprestador de última instância. E pratica uma política de liquidez que dá folga às instituições financeiras, mais ou menos no modelo do FED após a crise de 2007/08. O que são boas coisas. E, ao mesmo tempo, Wilhelm Buiter acrescenta uma lenta queda no déficit fiscal da Comunidade, uma diminuição do risco sistêmico de importantes bancos, e também a diminuição do risco de default desordenado de importantes Estados soberanos. Mas, alerta: continua a subcapitalização dos bancos e continua a volatilidade financeira. E por quê?

10) A concorrência entre os capitais situados nas finanças prossegue certa e extremamente forte. Pode-se empregar, para essa competição, a metáfora de um sistema darwiniano. Embora os bancos centrais tenham proporcionado alavancagens interessantes, os negócios com títulos andam a passos instáveis, inclusive com os títulos das chamadas dívidas soberanas. E sobretudo, nos alerta Volker, ex-presidente do FED, criador do dólar forte do final da década de 1980, que os grandes bancos estão empacados no espaço internacional com regras ainda não negociadas de fusão, de liquidação das instituições financeiras por causa de regulações jurídicas diferentes. E ele nos avisa da necessidade de padrões estandartizados de capital para os bancos em todo sistema.

11) E se a gente penetra na floresta ardente das finanças –dentro desse quadro de concorrência frontal, onde imperam a desconfiança de bancos em relação a outros bancos, a carência de regras talvez mais precisas para a separação dos bancos de investimento dos bancos comerciais, as indefinições nas questões de seguros de crédito, etc. – a gente percebe efeitos e pressões fortes sobre a União Européia. São provas disso o tombo das notas das agências de rating para os países europeus e também para setores bancários de um ou outro país. Na Europa, temos um jogo de vai e volta, de morde e assopra, de bate e alivia. E quando se pensa que a coisa vai dar uma acalmada, o chicote canta e estala na pele, sobretudo na dos países menores e da periferia europeia. Ou seja, as finanças conseguiram, com a sua política de austeridade, chegar a um movimento de pausa e crise, e de crise e pausa. Um círculo infernal. Depois de séculos da Europa cristã, da Europa das duas grandes guerras, alcançamos a efêmera presença de uma região financeira e liberal. Olhado pelo ângulo da longa duração da História, a indagação é turbulenta: para onde vai esta Europa das Finanças?

 
12) Pode-se concluir que a Comunidade europeia está tentando encarar a questão da crise fiscal e financeira da região. Mas, está postergando olhar nos olhos a crise social, que está aumentando barbaramente – e quase que por toda parte. A meu ver, esta crise da Europa, no entanto, não terá saída sem a resolução da crise americana e, por derivação, da crise inglesa, porque todas elas estão enfiadas numa crise do capitalismo. E essa crise capitalista é, na verdade, um conjunto de crises. Uma crise econômica, uma crise tecnológica, uma crise social, uma crise cultural, uma crise civilizacional. A crise na Europa, então, é só um apêndice. Só se pode perceber a Europa no interior da trama da História.

 
13) E aí temos um alumbramento, há várias questões a solucionar: como se dará a passagem da atual economia mundializada para uma nova economia? Haverá essa passagem? Um cara como Immanuel Wallerstein não acredita que o capitalismo sobreviva. E há indícios disso. A crise social não será resolvida, em nenhum lugar, se as finanças não pensarem numa forma de aglutinar, ao seu projeto, as múltiplas populações nas diversas camadas da sua inserção. Não há hipótese do financeiro ter – e, muito menos, ser – um projeto político e social para a contemporaneidade. Sua concepção é limitada e tosca. O neoliberalismo está sempre tentando voltar. Os ideólogos de plantão produzem ideias, obras e filmes para mostrar a riqueza desta visão. Mas, ela já veio abaixo. E Braudel já nos disse vigorosamente, o capitalismo só sobrevive com a adesão das massas. E o que me parece importante: o experimento das finanças hegemonizando os Estados, as políticas econômicas, e as estratégias de desenvolvimento econômico (industrial, comercial, agrícola, etc.) são, não custa dizer, um fracasso. Mas, elas, as finanças, também cabe salientar, continuam no poder.

14) A pergunta decisiva e fundamental no momento é a seguinte: existe possibilidade de acordo entre as finanças, a produção e a população? De qualquer forma, a mundialização financeira não tem tido solução para a mundialização social como pensava o neoliberalismo. Mas ele resiste, é um vírus que viveu se fortalecendo por ausência de contraponto. E sob o guarda chuva da mídia conservadora. Será que as pessoas não vêem que o experimento das finanças se evidencia e mostra toda a sua verdade na absoluta nudez do experimento grego? Será que o experimento grego, num processo de reversão dialético, não se tornará um presente grego para as finanças e para o mundo? Que sociedade virá daí? Será que estamos no inverso da peça de Shakespeare: bem está o que bem acaba? Sul21

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