sábado, 23 de julho de 2011

América Latina é mais autônoma em relação aos EUA, diz Dosman




A América Latina está mais autônoma em relação aos EUA. O Brasil desempenha um papel-chave para conter nacionalismos e precisa controlar suas próprias tentações. A crise atual vai aumentar o protecionismo.


As avaliações são de Edgar Dosman, cientista político e professor da Universidade de York, no Canadá, onde é pesquisador do Centro York de Estudos Internacionais e de Segurança.


Ele lança no Brasil o livro "Raúl Prebisch, a Construção da América Latina e do Terceiro Mundo", biografia do estruturalista argentino que construiu a Cepal (Comissão Econômica para a América Latina), imaginou a integração regional e defendeu a industrialização no continente.


A seguir, trechos da entrevista que concedeu à Folha. Dosman estará no Brasil em agosto para o lançamento do livro.



Folha - Como o sr. qualifica a situação na América Latina, os blocos econômicos e a emergência da China na região?



Edgar Dosman - É complexa. A arquitetura regional está em transição com numerosas iniciativas simultâneas, incluindo o esforço liderado pelo Brasil para consolidar a comunidade sul-americana. A criação de um novo processo latino-americano exclui os Estados Unidos e o Canadá e desafia a tradicional máquina interamericana centrada na Organização dos Estados Americanos (OEA). Há o experimento da Alba. Também o México faz uma nova aliança no Pacifico, com os países andinos. O processo de integração regional, que começou em 1960, teve uma segunda fase com a formação de blocos subregionais, como o Mercosul e o Nafta. Agora há um terceiro período, de conteúdo ainda indefinido. Todos os blocos existentes têm problemas de legitimidade, incluindo o Mercosul e o Nafta. A Alca está morta. O que é certo é que a América Latina tem hoje muito mais autonomia em relação aos EUA do que tinha no passado. Não apenas como resultado da afluência de atores poderosos como a China e a Índia, o que favorece um sistema econômico internacional multipolar, como também pelas conquistas macroeconômicas feitas a duras penas pelos governos latino-americanos, que deram uma resposta anticíclica à recessão de 2008. O declínio da influência norte-americana também reflete, é claro, a paralisia do governo de Washington, o que afeta o seu prestígio.


A questão do nacionalismo está de volta?



O Mercosul tomou o lugar da rivalidade militar entre Brasil e Argentina, com uma comunidade segura. Foi uma grande conquista. Também a diplomacia conteve crises como a entre Equador e Colômbia, administra as relações com a Venezuela, e aceita a liderança do Brasil no Haiti. É possível que a nova aliança do Pacífico alivie as tensões entre Chile e Peru. Mas há desafios. Na América hispânica, há resentimentos em relação ao poder do Brasil. Algumas das antigas rivalidades continuam (Chile-Bolívia, Colômbia-Venezuela, América Central etc), complicando o diálogo continental. A questão do crime na região precisa ser constatemente atacada. O principal fator de sucesso será a qualidade da liderança brasileira. Como lider regional, o país tem a responsabilidade de conter o nacionalismo e, mais do que isso, controlar suas próprias tentações.


Com a crise internacional, o protecionismo vai aumentar?



Com as incertezas da crise econômica internacional, é provável o aumento do protecionismo, pelo menos no curto prazo --os governos nada aprendem com a história. Novos acordos regionais ou limitados de cooperação, como os Brics, podem ser o foco da política de comércio internacional se o sistema global multilateral falhar. Os Estados Unidos e a União Europeia encaram fortes pressões internas em tempos de ansiedade e de paralisia política.


Qual sua visão do Mercosul?



Tem apoio forte, apesar das tensões. Enquanto existe hoje o início de um diálogo continental, o escopo da integração dos sistemas produtivos é muito mais profundo. O desafio continua sendo a disparidade na região entre países em diferentes níveis de capacidades e desenvolvimento.


A crise trouxe volta as ideias de Keynes e de Prebisch?



Sim. Wall Street redescobriu o Estado quando encarou a bancarrota e arrancou dinheiro de Washington. Agora Wall Street e o Partido Republicano voltaram à verborragia pré-crise, da desregulamenação dos mercados. Mas o dilema politico não está resolvido e pode haver surpresas. A questão chave do fracasso de mudanças no EUA é o poder de Wall Street sobre Washington. O vocabulário estruturalista de Prebisch não só está de volta como está sendo aplicado em alguns países como ponto de partida para novas análises da economia. Mesmo o FMI trocou seu tom na questão da desregulação dos fluxos de capital. Seu núcleo acredita que o capitalismo gera insabilidade e crise e que há fraturas estruturais na economia global. Isso não só foi aceito em teoria, mas foi aplicado na prática, como se observa nas estratégias anti-cíclicas do pós-2008, com a criação de ferramentas estatais para apoiar o desenvolvimento e as políticas sociais. Brasil e Chile são os melhores exemplos na América Latina da visão de Prebisch.


O Brasil tem se beneficiado da alta nos preços das commodities. A indústria está sendo afetada. O que fazer?



Em todo o periodo de explosão de commodiites e de créditos a questão surge. Na visão de Prebisch, o sistema econômico como um todo precisa de mover para a frente de forma conjunta, com um forte suporte estatal provendo infraestrutura e desenvolvimento. Com um Estado forte e azeitado promovendo o setor privado, as commodities têm um papel positivo, como na Noruega. Mas minério, madeira, soja e petróleo carregam consigo um perigoso potencial, como no caso da doença holandesa _danificam as perspectivas de longo prazo e aumentam a dependência do país em mercados instáveis. Em resumo, é vital aumentar a produção de maior valor agregado, o mercado doméstico e o desenvolvimento de recursos humanos apesar dos ganhos extraordinários nas exportações de commodities.


Qual o legado de Prebisch?



Prebisch contribuiu na teoria econômica, na construção de instituições, nas políticas de desenvolvimento e na diplomacia. Muito das suas proposições --controvertidas naquele tempo-- são agora aceitas como sabedoria convencional: integração regional, produção com valor agregado, convergência Norte-Sul, acordo global para o desenvolvimento internacional, inteligência estatal etc. Desde a morte de Prebisch, em 1986, o mundo mudou muito, mas as suas ideias fazem parte da memória regional, enriquecendo-a. Sua principal contribuição é dar perspectiva a especialistas e executivos que estão se confrontando agora com a urgência de estabelecer um novo paradigma de desenvolvimento para a região.


O periodo do "Consenso de Washington" prejudicou a discussão de suas ideias?



Sim. O neoliberalismo privilegia as forças do mercado. Prebisch insistiu no que chamou de "inteligência estatal": manter o equilíbrio entre mercados, com o Estado fazendo a moldura para o crescimento da economia. O Consenso de Washington moveu o pêndulo para os mercados desregulados e comprometeu o desenvolvimento nacional e a governança multilateral. As ditaduras na região, apoiadas por Washington, reagiram contra a doutrina da Cepal. As ditaduras complicaram o processo de integração regional. Mas o que sabotou a disseminação de suas ideias foi o momento: as ditaduras e o período neoliberal que começou com a recessão selvagem a partir da crise da dívida de 1982. Outro fator foi o conhecido conservadorismo das faculdades de economia, combinado com a onda de teóricos marxistas na região, que também rejeitavam .

Um comentário:

Zé disse...

O "Coitados" desUnidos, serão vencidos.