sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Democracia sitiada



25/09/2009

Cynara Menezes

A mediação pela Organização dos Estados Americanos (OEA) parece ser a única saída possível para o impasse em que se encontra Honduras desde que o presidente deposto, Manuel Zelaya, voltou ao país e pediu abrigo na Embaixada do Brasil em Tegucigalpa. Mantida sob controle pelas tropas de Roberto Micheletti durante os três meses de governo golpista, a população foi às ruas em apoio a Zelaya, levando a capital à convulsão. Ao menos duas pessoas morreram nos confrontos.

Micheletti se disse disposto a conversar, mas não a devolver o cargo ao presidente deposto. “Minha oferta não tem o poder de cancelar a ordem de prisão que lhe foi dada nem as acusações que sofre. Minha oferta é buscar uma solução política, mas não posso resolver suas dificuldades legais”, anunciou, em nota, o golpista, deixando bem claro que, se sair da embaixada, Zelaya será preso.

Em Honduras, ninguém se atrevia a antecipar um desfecho para o episódio. Até os analistas mais independentes duvidavam que o ex-presidente consiga voltar ao governo do qual foi apeado em 28 de junho. Uma solução aventada é a realização de um referendo entre a população para conferir se a maioria dos hondurenhos deseja o presidente de volta, mas nem mesmo a diplomacia brasileira acreditava na possibilidade desse tipo de entendimento.

“Foi por causa de uma consulta que o Zelaya caiu. Ele queria saber se havia a disposição para realizar uma Assembleia Constituinte e isso foi lido como tentativa de reeleição, o que serviu de argumento para o golpe”, disse à CartaCapital o assessor especial para Assuntos Internacionais da Presidência, Marco Aurélio Garcia. O assessor de Lula rechaçou por completo a possibilidade de Zelaya se entregar, defendida em editorial pelo jornal americano Wall Street Journal, tese abarcada por vários diários hondurenhos.

“Se entregar por quê? Ele é o presidente legítimo. Podemos imaginar que, por conta de uma negociação, os golpistas não sejam punidos, só isso”, opinou Garcia, que se declarou “estupefato” com o posicionamento da imprensa brasileira no episódio. “Os jornais estão mais preocupados em saber se o Brasil ajudou o Zelaya a entrar de volta no país, se não seria uma exorbitância nossa. Ora, o absurdo não é ele ter entrado, mas ter saído, de pijama e com uma metralhadora na cabeça.”

De acordo com o governo brasileiro, o Itamaraty só teria sido informado da chegada de Zelaya a Honduras depois que este havia batido às portas de sua representação diplomática em Tegucigalpa. O próprio Zelaya contou à imprensa que seu retorno foi concretizado, após duas tentativas frustradas, por meio de uma operação que durou quinze horas, por terra e por ar, entre o domingo 20 e segunda-feira 21.

O presidente da Venezuela, Hugo Chávez, foi quem deu mais detalhes da operação. “O presidente deposto, Manuel Zelaya, chegou no porta-malas de um carro e passou por vinte postos de controle para chegar a Tegucigalpa”, revelou Chávez. Depois, em Nova York, o venezuelano afirmou ter despistado os opositores de Zelaya dando informações erradas em telefones supostamente grampeados. “Liguei para ele e, como sei que estão nos gravando por satélite, disse: ‘Zelaya, nos vemos em Nova York’”, contou o venezuelano.

Fazendeiro rico, originalmente de centro-direita e perfil conservador, Zelaya começou a ser atacado pelos setores dominantes de seu país e foi apeado do poder justamente por se aproximar de Chávez e dos demais presidentes “bolivarianos” da América do Sul, Evo Morales, da Bolívia, e Rafael Correa, do Equador.

No decorrer da semana, a imprensa hondurenha criticava a diplomacia brasileira por ter permitido a entrada de Zelaya na embaixada em Tegucigalpa. “Há um problema em Honduras e devemos resolvê-lo definitivamente entre os hondurenhos”, defendia o El Heraldo. E destacava outro texto, assinado por um leitor, em que os diplomatas brasileiros eram chamados de “bárbaros do Sul”, agindo de forma homóloga aos “bárbaros do Norte”, os EUA.

O jornal La Tribuna acusava os simpatizantes do presidente deposto de vandalismo e, ao mesmo tempo, exortava os golpistas a aceitar nova visita da OEA, embora Micheletti tenha declarado restrições ao secretário-geral, José Miguel Insulza, a quem considera parcial. O único veículo impresso que se mostrava simpático à causa Zelayista era o pequeno Tiempo, de San Pedro, que, em editorial, mostrava as razões pelas quais o presidente golpista diz não perseguir a imprensa. Em Honduras, “o jornalista que valoriza sua vida ou se vende ou se expõe a ser atropelado por um ônibus”, acusou o diário.

O Tiempo também foi o único a destacar o pedido da Prêmio Nobel da Paz guatemalteca, Rigoberta Minchu, de que a integridade física de Zelaya seja respeitada, e o apelo da Anistia Internacional para que cessasse a repressão nas ruas. Ao menos dois veículos favoráveis a Zelaya, a Rádio Globo e a rede de televisão Canal 36, alegaram ter sido vítimas de atentados. “Os donos dos jornais não permitem que se fale contra o governo”, declarou à CartaCapital o articulista Billy Peña, do Tiempo, que afirmou não enxergar saída para a crise.

“Ambos, tanto Zelaya quanto Micheletti,- não dão o braço a torcer. Preocupa-me que haja um banho de sangue. Não acredito que Zelaya volte à Presidência”, opinou Peña, segundo quem, existe, para além da política, uma questão pessoal entre o golpista e o deposto, daí a intransigência mútua. Antes de planejar o golpe contra Zelaya, Micheletti era seu aliado. Os dois foram eleitos pelo Partido Liberal e Micheletti ocupou a presidência do Congresso enquanto Zelaya era presidente do país.

Dentro da embaixada brasileira, Zelaya reclamava de se sentir como se estivesse “num cárcere”. Uma das condições impostas pelo governo brasileiro para o “abrigo” – evitava-se falar em “asilo”, – foi que o presidente deposto mantivesse um perfil discreto, para não dar margens às criticas dos partidários de Micheletti e da oposição brasileira, que já acusava o hondurenho de transformar a representação diplomática do país em “escritório político”.

Manter-se discreto não parece ser o forte do bigodudo Zelaya, com seu 1,90 metro de altura e chapéu de caubói. Suas últimas declarações, de que ele e os seguidores na embaixada estavam sofrendo “dos nervos” devido ao bombardeio de ondas de ultrassom emitidas por equipamentos instalados por mercenários israe-lenses, causaram desconfiança na imprensa internacional. Assim como a suspeita de que o governo Micheletti dispunha de um plano para assassiná-lo no interior da representação brasileira, fazendo crer que fora suicídio.

Histrionismos à parte, o que poucos questionam é a legitimidade de seu retorno ao poder. Depois que o presidente Lula declarou na Assembleia-Geral da ONU que a comunidade internacional exige que Manuel Zelaya reassuma imediatamente a Presidência de seu país”, outros chefes de Estado o seguiram. Também na ONU, o presidente do governo espanhol, José Luis Zapatero, declarou: “Não vamos aceitar um golpe antidemocrático. A democracia voltará a Honduras”.

A presidente do Chile, Michelle Bachelet, pediu em discurso que as eleições em Honduras sejam coordenadas pelo presidente eleito “democraticamente”. E o cerco a Micheletti continuou com a suspensão temporária pela ONU da cooperação com o Supremo Tribunal Eleitoral de Honduras para a realização do pleito de novembro, por falta de credibilidade.

Ecoava ainda a decisão do FMI de continuar reconhecendo Zelaya como chefe de Estado. No contra-ataque, os jornais hondurenhos divulgaram um estudo elaborado pela Biblioteca do Congresso dos EUA que avalia a destituição de Zelaya como “amparada na Constituição”. O informe defende, porém, que a expulsão do presidente eleito foi ilegal e recomenda a Micheletti que permita sua saída da embaixada.

O governo brasileiro mantinha a expectativa de uma reunião extraordinária do Conselho de Segurança da ONU na sexta-feira 25. Como os analistas hondurenhos, o Itamaraty trabalha com a hipótese da negociação entre os golpistas e o presidente eleito para que o país não entre numa crise de longa duração. Apesar dos péssimos indicadores sociais, com altas taxas de desigualdade, analfabetismo e trabalho infantil, Honduras é um país de tradição pacífica.

Mesmo com as restrições feitas a seu nome por Micheletti, Insulza anunciou a ida de uma missão a Honduras para uma mesa de negociações tendo como base o acordo de San José, elaborado pelo presidente da Costa Rica, Oscar Arias, que prevê a volta de Zelaya ao poder sem direito à reeleição. Em entrevista, Insulza disse que “toda – com t maiúsculo – comunidade internacional apoia a atitude do Brasil”.

Resta saber como e quando Zelaya sairá de seu bunker na embaixada para participar das negociações. “Haya de la Torre ficou dez anos numa embaixada, isso é o de menos”, declarou Marco Aurélio Garcia. Na verdade, o peruano Víctor Raúl Haya de la Torre, perseguido pela ditadura militar do general Manuel Odría, se refugiou durante cinco anos na embaixada da Colômbia, em Lima, de 1949 a 1954, até obter um salvo-conduto para deixar o Peru. Zelaya, ao contrário, parece disposto a cruzar as portas da embaixada brasileira só quando obtiver o direito de permanecer, não de fugir.
CartaCapital.

Um comentário:

Anônimo disse...

"Golpe de mestre de Chávez que evitou alojar Zelaya na embaixada da Venezuela, ordenando a seus amigos na para-diplomacia brasileira chefiada por Marco Aurélio Garcia que o acolhessem na representação brasileira. 'Hoje o Brasil tem um problema em Honduras e Chávez, que o produziu, não tem nenhum', diz Maristella Basso, professora de direito internacional a Universidade de São Paulo. Chávez age como o líder do subcontinente americano. Ataca Barack Obama, presidente americano, e ignora Lula. Com as eleições marcadas para o próximo dia 29 de normalidade democrática. O candidato ligado a Manuel Zelaya aparecia até bem colocado nas pesquisas de intenção de voto. Seria uma saída rápida e democrática para um golpe, coisa inédita na América Latina. Seria.Agora o desfecho da crise é imprevisível. O mais lógico seria deixar o retornado sob os cuidados dos amigos brasileiros até depois das eleições que, se legítimas, convenceriam a comunidade internacional das intenções democráticas dos golpistas. Mas é preciso combinar com os apoiadores e detratores de Zelaya nas ruas e elas costumam ter sua própria e volátil dinâmica. O Brasil, que poderia ser parte da solução da crise de novembro, o governo interino que derrubou Zelaya se preparava para reconduzir o país à Honduras, tornou-se, graças a Chávez, o problema. A embaixada brasileira agora tem um hóspede que ouve vozes e uma para-diplomacia que ouve ditadores estrangeiros."