segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Leci Brandão, “socialista com certeza”, fala de política e samba


31 de Agosto de 2009

As longas guias de contas azul-marinhas e vermelhas indicam, em seu pescoço, quem são seus orixás. Filha de Ogum e Iansã, mas especialmente de Dona Leci, Leci Brandão não esconde o espírito guerreiro de suas divindades. Um dos maiores nomes do samba, a cantora – que quase virou jornalista – diz que sempre fez “reportagens musicais” para retratar a realidade das periferias.

Por Priscila Lobregatte


Criada no subúrbio do Rio de Janeiro e constantemente presente às periferias de todo país, Leci conhece bem a realidade do povo brasileiro. Nesta entrevista ao portal Vermelho, dada no final de agosto em um restaurante de São Paulo após almoço entre amigos, a cantora fala de música, mas principalmente de sua visão política. “Fazia meu trabalho e percebia que existia uma identidade entre os movimentos populares e eu”, diz, lembrando que sofreu algumas interrupções em sua carreira “porque o sistema não gosta de artista consciente, do artista que fala de luta social ou que briga politicamente por alguma coisa”. Por fim, afirmou: “sou socialista com certeza”.


Você ganhou o Prêmio da Música Brasileira na categoria Melhor Cantora de Samba. Como vê esse tipo de reconhecimento?

Mandei o meu CD (“Eu e o samba”) para o concurso, havia cerca de 300 artistas concorrendo e foram premiados 31 deles. E tive essa grande felicidade. Não sabia que meu CD teria essa aceitação tão legal. Fiquei muito feliz mesmo. Agora, preciso arrumar nova gravadora – já que a que estava prometeu divulgação e não fez – e começar o novo álbum. Ou seja, agora, estou desempregada. Preciso também de incentivo para gravar meu DVD voltado para a questão da diversidade. Quero gravar músicas de todas as regiões e espero que consiga até o final do ano.

Você é uma artista muito respeitada também no meio hip hop, que é um movimento cultural muito ligado à política...

Os meninos do rap e do hip hop, para mim, representam a juventude que fazia o protesto lá nos anos 1960, que o pessoal da MPB fazia e não faz mais. São esses meninos que fazem a música de protesto. Eles falam da realidade das comunidades deles de maneira muito apropriada e não são reconhecidos, não há espaço para eles na mídia. Agora, o funk, por exemplo, que fala de baixaria e tal, a mídia gosta. As letras sérias desses meninos não têm abertura. Fico muito entristecida com a mídia nesse sentido.

Acredita que movimentos culturais como o hip hop pode reaproximar a juventude da política?

Com certeza. Esse resgate pode ser feito inclusive com muita propriedade pelo pessoal do rap, do hip hop e do próprio samba porque nosso trabalho é popular, estamos sempre cantando nas periferias, nas praças, nas cadeias. Acho que a gente pode fazer uma modificação na forma como a juventude encara a política.

O que a levou a se aproximar de partidos e organizações de esquerda?

Na verdade, nunca me aproximei dos partidos. Os partidos é que sempre me convidaram porque as pessoas percebiam nas minhas músicas e nas minhas apresentações – ainda no Teatro Opinião e na Mangueira – o meu posicionamento político, que sempre esteve presente em meu trabalho. Então, passei a ser chamada por sindicatos e partidos para shows sem que fosse filiada a nenhum deles. Costumo dizer que faço “reportagens musicais” porque procuro retratar a realidade. A música “Anjos da Guarda”, por exemplo, nunca foi tocada em rádio, mas tudo quanto é sindicato de professores pelo país toca essa música em passeata. Acabou sendo uma simbiose: fazia meu trabalho e percebia que existia uma identidade entre os movimentos populares e eu. Sempre foi assim nesses meus 35 anos de carreira, o que inclusive fez com que eu sofresse algumas interrupções porque o sistema não gosta de artista consciente, do artista que fala de luta social ou que briga politicamente por alguma coisa.

Em que momento ficou clara para você essa característica do “sistema”?

Durante os cinco anos em que fiquei sem gravadora. Apresentei um repertório em 1981 – que entre outras músicas tinha “Zé do Caroço”, que hoje é um sucesso, e “Deixa, deixa” – e uma gravadora multinacional disse que aquele repertório não a interessava, que eu devia ir para casa fazer outras músicas. Ou seja, fiquei sem gravadora até 1985. E fiquei sobrevivendo fazendo shows. Colocava meu LP debaixo do braço e ia ao trabalho.

Recentemente você reassumiu cargo no Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial...

É. Estive no Conselho convidada pela então ministra (da Secretaria da Igualdade Racial) Matilde Ribeiro. Com sua saída, achei que não devia continuar e agora o ministro Edson Santos me convidou para retornar e tomei posse dia 11.

E que possibilidades você vê na atuação desse Conselho na luta contra a discriminação racial?

O Conselho recebe reivindicações variadas dos movimentos sociais – como os de negros, indígenas, ciganos, palestinos etc. Precisamos, por exemplo, atentar sempre para a questão da lei 10.639/2003 (que estabelece o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira), para as ações direcionadas ao combate da anemia falciforme – com maior concentração nas crianças de raça negra -, acompanhar a aplicação, pelas empresas, do cumprimento das cotas porque infelizmente tudo depende de cotas. Mas, brigamos principalmente para que as políticas públicas que o governo oferece para a população menos favorecida sejam efetivamente colocadas em prática.

Nesse sentido, como avalia o governo Lula?

Para repetir o que o presidente costuma falar, nunca antes na história do país tivemos ações desse tipo. E é verdade. Nunca tivemos uma secretaria, com status de ministério, que se preocupasse com essas questões. Foi um compromisso do Lula para atender às demandas da população negra. Outra questão que acho importante é o Bolsa Família. Há muita gente que acha que não se deve dar alimento, que tem que dar trabalho. Mas tem gente que nunca comia nada, que passava fome mesmo e o programa fez com que as pessoas pudessem ao menos se alimentar. O programa Minha Casa, Minha Vida é outro projeto muito legal porque as pessoas vão ter realmente a possibilidade de ter uma casa. A retirada do IPI beneficiou a classe C, que passou a poder ter seu carrinho, trocar sua geladeira, seu fogão. A questão do crédito – e mesmo dos juros que baixaram um pouco – criou condições para que as pessoas mais simples pudessem ter suas coisas. O ProUni e as cotas nas universidades são também muito importantes. Estamos brigando para que a cota seja cumprida porque se não o negro jamais vai poder ter curso superior. O governo Lula, em termos de oportunidades para a população mais carente, está sendo muito bom. Não é à toa que, com todas as confusões que existem na política, a aprovação dele continua em alta. Lula é chamado até para tentar resolver conflito no Oriente Médio. Não estudou na Sorbonne, mas é um cara muito inteligente.

Você falou sobre as “confusões da política”. E hoje parece haver uma resistência muito grande aos políticos...

É uma grande campanha, na verdade. Hoje a televisão e os jornais conduzem o pensamento brasileiro de uma forma muito direta. Episódios como o “mensalão” e confusões desse tipo são muito ruins para a política brasileira. O problema é que as pessoas pensam em radicalizar, ou seja, dizer que todo político é corrupto, é ladrão e não é assim. Há muitas pessoas no parlamento cuidando para fazer leis que ajudem nosso povo. Não se pode colocar tudo na mesma frigideira. Existem os bons parlamentares. Agora, acho que tem de haver uma assepsia muito grande porque na hora em que surge qualquer foco ruim, você percebe que todo mundo tem uma historinha ruim para contar sobre o outro, ou seja, parece que está todo mundo preso na mesma corda.

É um problema da estrutura política?

É um problema da estrutura política nacional. As pessoas não se candidatam para exercer a política, mas para se dar bem, para enriquecer seu patrimônio, empregar outras pessoas, fazer acordos com empreiteiras. Mas, nas últimas eleições muitas oligarquias perderam poder político. Percebe-se que o eleitor está mais atento. Hoje tem a TV Senado, a TV Câmara, que já ajudam a aproximar a população do legislativo. Agora, a população também precisa saber que deve dar oportunidade às pessoas que são honestas e estão querendo fazer algo legal.

Como avalia a experiência das mulheres na política, especialmente as mulheres negras?

Todos os nossos ícones caíram por terra, como Benedita (da Silva), a Matilde (Ribeiro) e isso é muito ruim para a mulher negra. A gente se sente muito carente de líderes. Quer dizer, será que nunca teremos uma mulher negra que entenda dos nossos problemas, sem que haja alguma coisa para a mídia explorar e acabar com a sua imagem? A mídia é cruel com a mulher negra. A ministra Matilde fez uma série de ações positivas e ninguém publicou nada, agora quando teve o episódio do cartão (corporativo), ela saiu em todos os jornais.

Você é socialista?

Sou socialista com certeza e acho que percebi isso desde que comecei a trabalhar fora. Na fábrica de cartuchos em que trabalhava, quando via uma injustiça, eu sempre saia para defender os trabalhadores, tomava a frente, ajudava pessoas que eram analfabetas e queriam escrever para a família. Brigava pelos direitos das pessoas e nunca gostei de injustiça de nenhuma espécie. E vou continuar sendo assim.


Saiba mais sobre a vida e a obra de Leci Brandão em http://www.lecibrandao.com.br/
Fonte:Portal Vermelho.

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