terça-feira, 21 de julho de 2009

Elocubrações pós-lulistas e a esperteza de Appius Claudius

20 Jul 2009 09


Tenho trabalhado freneticamente nos últimos dias, traduzindo filmes argentinos. É um trampo bem legal porque, felizmente, são filmes bons. Para quem trabalhou quinze anos fazendo matérias sobre café, traduzir bons filmes argentinos é um trabalho quase onírico. Pena que vai durar pouco. Mas não quero ser ingrato com a rubiácea, que me deu (e ainda dá, de vez em quando) tanta coisa. Qualquer dia conto as mil histórias que vivi no mundo marrom e verde do café, viajando por todo Brasil à cata de assinaturas e reportagens.

Acabo de traduzir El Camino de San Diego, um filme emocionante de Carlos Sorín, sobre Tito Benítez, jovem do interior de Misiones, província pobre e atrasada do norte da Argentina, um fanático por Diego Armando Maradona. O ator é genial e conseguiu criar um personagem autêntico, um rapaz simplório e generoso que, justamente quando sua mulher dá a luz ao terceiro filho, é demitido da madeireira onde trabalha. Seus amigos sugerem que procure um velho artesão. Ele se torna aprendiz do velho e passa a trabalhar nessa área, ajudando o mestre a procurar raízes e madeiras que apresentem formas originais, para serem trabalhados e vendidos nas cidades próximas. Um dia, durante uma tempestade, ele encontra uma raíz que lembra muito Diego Maradona com os braços para o alto. Ele se entusiasma deveras com aquilo. No dia seguinte, um conhecido bate à sua porta para lhe contar uma notícia: Maradona fora internado e estava num Centro de Tratamento Intensivo. Tati não possui sequer um rádio e corre para o bar onde há um aparelho de TV.

Decide então ir à Buenos Aires presentear Maradona com sua estátua de madeira. Não vou me estender mais. Adianto apenas que, no caminho, vai encontrando vários tipos, e todos se solidarizam de alguma forma com o personagem, que é um jovem realmente cativante. O espectador fica apreensivo, o tempo inteiro, com o que vai lhe acontecer, pois nota-se que ele é crédulo e ingênuo. Mas o rapaz tem uma boa estrela e consegue despertar, em todos que encontra, uma surpreendente generosidade.

Emocionei-me porque, vendo esses argentinos comuns, simples, trabalhadores, pensei em meus conterrâneos. Já viajei bastante por esse Brasil e não paro de me surpreender com a doçura, educação e generosidade dos brasileiros, sempre dispostos a ajudar, informar, conversar. Evidentemente há muita maldade, muita gente ruim, como em toda parte. Mas tive o privilégio de observar as relações humanas na Europa, por exemplo, e constatei que os brasileiros (e argentinos, conforme pude ver nesse filme), tidos como ignorantes e desonestos pelos próprios brasileiros, são, na verdade, um povo extremamente cordial, divertido e amoroso, e é junto dele, do povo brasileiro (por mais cafona que isso possa parecer aos cínicos colonizados e pseudo-sofisticados que abundam na internet) que me sinto mais à vontade. Entrando num ônibus de algum lugarejo de Minas, Bahia ou Espírito Santo, e observando os trabalhadores sentados, circunspectos e silenciosos, sentia essa mesma emoção, esse mesmo amor por meus irmãos brasileiros. Sentia uma espécie de orgulho, um orgulho besta, vaidoso, jesuítico, de estar ali, entre os pobres, e não num avião cheio de almofadinhas convencidos.

Mas já que adentrei nesta seara franciscana, permitam-me decepcionar os mais inocentes. Quer dizer, se tiverem paciência e tempo de darem um pouco de atenção às minhas teorias, talvez não fiquem tão decepcionados. Pode ser que se sintam até entusiasmados. Já fui anarquista e até hoje as pessoas me crêem socialista ou coisa parecida. No entanto, eu me nomeio, e sinto-me muito franco e honesto em afirmá-lo, um capitalista de esquerda. Claro que isso é uma simplicação grosseira, em contraste inclusive com outra idéia minha, a saber, que o capitalismo não existe. Essa é uma teoria inspirada nos textos de Noam Chomski, para quem o capitalismo americano, conforme é apregoado por seus ideólogos, nunca existiu de fato, ou talvez tenha existido somente nos primeiros anos de colonização, entre os pioneiros. Os Estados Unidos, e Chomsky prova isso com estatísticas e documentos, desde sua independência, sempre foram uma democracia de Estado, com predominância do poder público e estatal. Neste momento, em que o governo americano é acionista majoritário dos maiores bancos, seguradoras e indústrias do país, a afirmação de Chomsky faz mais sentido que nunca.

Engels e Marx estudam as origens do capital desde seus primórdios. Para Marx, o capitalismo propriamente dito surgirá no fim da idade média, quando o mundo ocidental começa a experimentar transformações tecnológicas poderosas. Engels, por sua vez, buscará raízes na pré-história, quando o homem escraviza o animal doméstico e sua própria família.

Acho que as teorias de Marx têm muito valor para algumas coisas, mas mantenho minha postura heraclitiana de achar que o conhecimento é dialético e obscuro e, como tal, não poderá nunca ser encontrado num ponto determinado, numa teoria específica. Ou seja, as teorias marxistas, colocadas sob o fogo implacável da história e da razão, perderam sua gordura revolucionária e delas sobreviveram apenas os conceitos mais originais e mais importantes. Não porque Marx não tivesse sido suficientemente astuto, mas porque o conhecimento só é possível perante a experiência concreta. O conhecimento da história se desenvolve (e somente assim) simultaneamente ao processo histórico. Descartes e Espinoza também foram gênios cheios de prudência e astúcia, mas suas teorias tiveram que, igualmente, perder muita gordura antes de serem classificadas entre os cânones da filosofia.

Considero-me - o que é extremamente engraçado partindo de alguém considerado entre os íntimos como um socialista incendiário - um conservador. Defendo um Estado forte, com monopólio sobre o sistema de crédito (ou seja, sem bancos privados), democrático, e que, ao mesmo tempo que garanta uma sólida liberdade individual e empresarial, e justamente por causa disso, exerça uma supervisão rígida sobre toda a vida econômica da sociedade. Educação e saúde gratuitas são outros itens sagrados da minha pessoalíssima ideologia morena.

Embora essa conversa pareça entrar no campo da discussão utópica, a ideologia que eu descrevi laconicamente acima, em verdade, é a que mais próxima está de nossa Constituição. O problema social, a meu ver, não seria resolvido com revolução (e por isso me considero “conservador”) e sim através das ferramentas de que dispomos hoje; ou seja, através do voto.

As pessoas esquecem que o regime político sob o qual vivemos tem mais de 2.500 anos. Abrindo um pouco o campo de visão, adentramos uma teoria interessantíssima, sempre mencionada pelo cientista Wanderley Guilherme dos Santos, sobre o caráter biológico da organização social humana. Esse foi o maior erro de Marx, que revelou a sua arrogância suprema, característica, aliás, que contamina todo esquerdista radical. Segundo essa teoria, a organização social humana integra o mesmo processo que levou à formação de nosso cérebro, nossa postura ereta, mãos ágeis, sentidos aguçados e capacidade imaginativa. Trata-se de uma teoria extremamente respeitada nos meios científicos, embora ainda olhada com muita desconfiança por intelectuais marxistas por sua inevitável valorização de um certo conservadorismo.

Eu tenho a impressão, todavia, que uma teoria dessas, se desenvolvida competentemente, poderia representar uma derrota teórica fulminante para a direita, para o conservadorismo chulé e, sobretudo, para esse monstro de hipocrisia e violência social chamado neoliberalismo. Não seria fácil: teríamos que extirpar de vez o revolucionarismo adolescente que caracteriza o discurso de muitos representantes políticos da esquerda, e causar um estrago talvez fatal no prestígio do marxismo. Por outro lado, não é exatamente isso que está acontecendo? O socialismo moreno da América Latina não é, na prática, justamente isso? Quer dizer, alguns governantes estão agindo assim, pragmaticamente, e o discurso de pirotecnia revolucionária de alguns apenas atrapalha, além de não corresponder à realidade do que eles mesmos fazem. Não é, aliás, pela compreensão do que Lula representa, em termos de avanço teórico, para a democracia contemporânea, ainda amarrada a disputas ideológicas depressivas (para um lado e para o outro), que ele faz tanto sucesso no mundo inteiro, despertando uma simpatia quase apaixonada em autoridades e intelectuais tão díspares quanto Hugo Chávez e Sarkozy, Obama e Ahminejad?

Estivesse preso aos dogmas marxistas, ou mesmo a qualquer tipo de academicismo ou ortodoxia, Lula nunca poderia ter alcançado essa originalidade ideológica tão desprezada no Brasil e tão admirada lá fora; pela mesma razão que B.B.King nunca poderia aprender blues na prestigiada Berkeley. Nosso presidente operário mostrou, enfim, que a política também é um arte, e como tal, deve ser pensada intuitivamente, sobretudo quando chegamos num momento de crise ideológica aguda, como chegou a esquerda na década de 80, e mais ainda a partir da queda do muro de Berlim e abertura econômica da China.

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A esperteza de Appius Claudius

Não quero terminar o post hoje, porém, sem fazer uma última observação. Estou gostando muito de um livro, Les institutions politique romaines, de Léon Homo, e há pouco passei por um trecho que me remeteu imediatamente a uma situação política bem conhecida nossa. No século IV antes de Jesus Cristo, ou seja, mais de 300 anos antes de nascer Júlio César, Roma era uma república bastante avançada em termos jurídicos, mas experimentava, justamente por ser moderna, conflitos sociais agudos, caracterizados principalmente pelo enfrentamento entre patrícios e plebeus, ou seja, entre os nobres, de famílias tradicionais, e a turma sem passaporte da época. Nos anos seguintes, os patrícios perderão, paulatinamente, sua influência política, e os conflitos se desenvolverão, como de praxe, para uma guerra de classes. Mas antes de perderem poder, os patrícios conseguiram, por muitas gerações, conservá-lo através de artimanhas políticas das mais variadas. Uma dessas é descrita por Homo como protagonizada por um patrício brilhante, Appius Claudius, líder da ala mais à direita da nobreza romana. Homo mostra que havia uma divisão de esquerda e direita tanto entre patrícios quanto entre plebeus. Entre os patrícios, havia uma esquerda querendo estabelecer relações com os plebeus mais ricos, que por sua vez formavam a direita deste segmento. E havia, naturalmente, uma extrema esquerda plebéia, dominada por líderes radicais. Pois não é que Appius Claudius, num lance de genialidade política, consegue estabelecer uma parceria, tácita mas sólida, com esses grupos radicais? A estratégia foi muito bem sucedida - para o lado dos patrícios, claro. Homo argumenta que esses radicais da esquerda plebéia não perceberam a armadilha em que caíram, e que iria resultar, no futuro breve, em muitas décadas de derrota política para sua classe. O plano de Appius foi relativamente fácil. Explorou a insatisfação dos radicais com a situação vigente e usou-os para derrubar seus adversários. Qualquer semelhança do PSDB e DEM usando o PSOL para derrubar Sarney e o presidente Lula não é mera coincidência.
Acesse oleododiabo.blogspot.com do amigo Muguel do Rosário.

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