terça-feira, 23 de dezembro de 2008

AINDA SOBRE A SAPATADA

El Batal 44

23/12/2008

Wálter Fanganiello Maierovitch

Nos meus 61 anos de idade, assisti a três espetáculos muito semelhantes. Um deles ao vivo, em cores. Os outros dois acompanhei pelo YouTube.

Sobre eles e por partes. Em 30 de abril de 1993, uma multidão concentrou-se na romana Praça Navona, defronte ao Hotel Raphael, por volta das 7h30, à espera da saída do ex-premier Bettino Craxi.

Apanhado na Operação Mãos Limpas, em face de suspeitas de corrupção, fraude eleitoral, peculato e evasão de divisas, Craxi, na saída do hotel, recebeu significativa reprovação popular, externada por uma chuva de moedas, gritos de ladro e vaffanculo.

O barulho das moedas em choque contra a lataria do carro oficial só restou abafado pela sirene. Craxi fugiu para a Tunísia, onde morreu anos depois, sem nenhum odor de santidade. Com a punibilidade extinta pela morte, o seu corpo pôde livremente reingressar e ganhar sepultura em terra natal.

Quando da derrubada da gigantesca estátua do sanguinário Saddam Hussein, em 2003, uma multidão de xiitas e curdos promoveu uma saraivada de sapatadas, como se o ditador estivesse presente. Pela tradição dos islâmicos, quer do Iraque, quer de todo o Oriente Médio, mostrar ou atirar sapatos representa a exteriorização de desprezo e de ódio. Com efeito, algo potencialmente mais ofensivo do que a prática peninsular-ocidental de atirar moedas.

À época da derrubada da estátua, o presidente George Bush vibrou. A sua política externa de guerra ao terror e de invasão do Iraque, apoiada em mentiras espalhadas pelo Departamento de Defesa comandado por Donald Rumsfeld, o negociante, recebia expressiva aprovação dos cidadãos norte-americanos, atemorizados com a possibilidade de repetição do trágico 11 de setembro de 2001.

No fim de mandato e em busca de um canhestro projeto de mudança de imagem, baseado em visitas, entrevistas e discursos, Bush, que jogou no ralo iraquiano, entre março de 2003 e julho de 2008, contabilizados 117 bilhões de dólares, recebeu as suas merecidas sapatadas, como a estátua que simbolizava Saddam.

Mais ainda, o jornalista arremessador, Muntadar al-Zaidi, de 28 anos, empregado na decadente rede de televisão Al-Bagdadiya, cujo dono era aliado de Saddam e fez fortuna com o programa Oil for Food da ONU, ainda teve tempo de emendar uma frase: “Este é o beijo de adeus do povo iraquiano, seu cachorro”.

Dispensável lembrar que o termo “cachorro” não foi empregado no sentido ocidental de melhor amigo do homem. Entre os islâmicos, o cão é considerado um animal impuro.

Muntadar acabou preso por ultrajar um chefe de Estado estrangeiro. Mas na boca do povo virou o “El Batal 44” do Iraque, isto é, o herói iraquiano, dos sapatos tamanho 44.

Mais de 200 advogados pediram a sua soltura e todos sufragam a tese de Khalil al-Duelmi, antigo advogado de defesa de Saddam Hussein. Para os advogados, a ação foi legítima. Ou seja, não houve crime, mas legítima defesa, pois os EUA invadiram e ocupam o Iraque. Assim, toda a resistência torna-se legítima.

Para a CIA, a agência norte-americana de espionagem, tudo foi montado pelo líder radical xiita, Moqtada al-Sadr. Ele comanda ações políticas e milícias contra os invasores norte-americanos e os seus aliados. A suspeita parte do fato de o jornalista Muntadar morar no bairro de Sadr City e conhecer Moqtada.

Muntadar já fora seqüestrado e interrogado por três dias por agentes da CIA. Havia a suspeita de que sabia com antecipação e filmou, em novembro de 2007, um ataque a um veículo militar leve dos EUA, executado por milícia de Moqtada.

Os 117 bilhões de dólares gastos sob a rubrica de “reconstrução do Iraque” estarão especificados em relatório intitulado Hard Lessons (duras lições), que será publicado em 2 de fevereiro de 2009, já com Bush fora da Casa Branca. Vai se perceber como dólares alimentaram um sistema clientelista, de agrado a políticos locais e a chefes tribais.

O certo é que Bush, antes das sapatadas, chegara ao Iraque triunfante. Isto para colher os louros de ter acertado, com o premier Al-Maliki e o Parlamento, a retirada das tropas americanas em 2011. Não percebeu que os sunitas, antigos defensores de Saddam, agora desejam a permanência das tropas. Eles temem que xiitas e curdos controlem o poder. Os xiitas radicais, à frente Moqtada al-Sadr, querem a saída imediata, para melhor consolidarem as conquistas. A violência, que se proclama reduzida, deveu-se à nova postura de aproximação dos sunitas com os invasores, que distribuem, a grupos sunitas contrários aos jihadistas alqaedistas, cerca de 400 dólares por combatente.

Os sunitas temem ficar fora da lei de repartição das riquezas petrolíferas. A lei foi engavetada pelo premier, que fechou vultosos contratos petrolíferos com a Shell e a Exxon.

Como se percebe, o quadro iraquiano ainda é explosivo e, por trás das sapatadas, percebe-se a camisa-de-sete-varas que Bush enfiou nos EUA.
CartaCapital.

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