quinta-feira, 30 de outubro de 2008

VOCÊ SABIA?



Quinta, 30 de outubro de 2008,
Sirio Possenti
De Campinas (SP)


Demorei praticamente duas semanas para descobrir quais eram as nove perguntas que a propaganda de Marta Suplicy dirigiu aos espectadores, relativas ao candidato Gilberto Kassab no começo da campanha do segundo turno. Tudo o que eu sabia - de ler lido diversos tipos de textos: notícias, comentários, alusões - era que havia duas perguntas que Marta não deveria ter feito, por serem sobre a vida privada (ou mais que privada) do outro candidato e, especialmente, porque seriam perguntas relativas à sua opção sexual, vindas logo dela, que sempre foi não só liberal, mas também defensora do não constrangimento de ninguém em função de opções sexuais, além de promotora de legislação avançada sobre questões conexas...

As duas perguntas que eu sabia que a propaganda de Marta fazia ao "público" sobre Kassab eram "É casado? Tem filhos?". Mas eu tinha lido que as perguntas eram nove, e apenas no final de semana passado (19/10/2008) vi em uma revista semanal que duas das outras perguntas eram se ele tem problemas com a justiça e se sua vida melhorou depois que entrou para a política. Inclusive, a revista mostra uma imagem que apareceu na TV: ela mostra Kassab em close, e as duas últimas perguntas estão grafadas de forma bem visível sobre seu rosto.

Digitei "é casado" no Google (ainda sou um péssimo buscador, mas eu chego lá). Não li muitas "postagens", mas, das que li, só uma citava um texto que dizia que, ao lado dessas perguntas capciosas, havia outras, e que essas relevantes numa eleição. Apenas um texto, citado por outro! De Dines a Juca Kfouri, todos falaram apenas de duas das nove perguntas (Juca, alusivamente. Escreveu no final de sua coluna esportiva: "Sou casado, tenho quatro filhos e seria um péssimo prefeito").

Minha questão não é eleitoral, nem publicitária. Minha questão é sobre leitura. Creio que há duas maneiras básicas de falar de leitura, de pesquisar sobre leitura. Uma tem a ver com decifração, ou seja, com técnicas, métodos, teorias que permitiriam a um leitor ter acesso aos sentidos dos textos (verdadeiros, profundos, corretos etc. dependendo do que se quer, ou dependendo do campo: jurídico, religioso, filosófico, literário, técnico, comercial, publicitário...).

Outra vertente tem a ver com circulação. A pergunta, no caso, é quais textos circulam onde, quem lê o quê (em que século, nas escolas, nas bancas de jornal, na internet etc.). Uma subdivisão seria: como certos textos circulam: inteiros, aos pedaços, adaptados, em edições originais, traduzidos? E mais: por que, de um texto integral, circulam partes (estrofes, versos, finais, começos, pontos culminantes?). Finalmente - eis a questão - por que, das nove perguntas dessa peça de campanha, duas foram lidas, repetidas, comentadas, interpretadas, tiveram sua autoria discutida etc. e as outras sete nem foram mencionadas?

Vejamos um documento, o início do editorial do Estadão de 25/10/2008: Perguntas que não querem calar são aquelas que, por sua pertinência, clamam por uma resposta. As perguntas que a propaganda da candidata Marta Suplicy levou ao ar contra o seu adversário Gilberto Kassab - "É casado? Tem filhos?" - também não querem calar, mas por motivos que se diriam diametralmente opostos: a indignação que provocaram até mesmo no PT e a duvidosa distinção que acabaram adquirindo...O artigo definido "as" (que grifei) poderia dar a entender que as duas perguntas são todas as perguntas.

Do ponto de vista da decifração, o percurso não é óbvio (interpretações são sempre propostas de interpretação). Mas não importa muito, no caso (talvez isso nunca importe, de fato), a interpretação de um leitor, mesmo se especialista. O que importa é a interpretação que circulou. Ela parte de dois dados prévios: sabe-se que Kassab não é casado e que não tem filhos (e não por que a Veja lhe fez perguntas que partiam desses dois pressupostos, mas porque a família nunca apareceu em público a seu lado etc.).

A maldade atribuída à propaganda, entretanto, não tem nada a ver com a solteirice de Kassab, e sim com suposições que estamos acostumados a fazer, a inferências que a sociedade extrai de certos dados: se não é casado, talvez não seja (ou, mais a seco: não é) heterossexual, ou, diretamente, é homossexual. É por ser este o percurso de interpretação que todos disseram que Marta fez insinuações maldosas, que a propaganda apelou para a baixaria, que se começou a invadir a vida privada quando não era o caso etc.

A questão de fundo, para alguns, seria: "se é homossexual, não pode ser um bom prefeito". Para outros: "se esconde sua opção sexual, deve estar escondendo outras características que podem fazer dele um mau prefeito". "Tem filhos?" poderia parecer uma pergunta redundante. Mas não é. Ela "aprofunda" a anterior, porque ele poderia não ser casado, e mesmo assim ter filhos, se... Essa é a questão.

As perguntas são só perguntas, dirá quem defende a propaganda. Acontece que elas não são feitas no vazio: não só se sabe quais são as respostas (a essas duas perguntas, insisto), como essas respostas estão associadas a sólidos preconceitos em relação aos que, podendo ser casados e ter filhos, não o são e não os têm.

Talvez uma boa explicação para esse fenômeno possa ser encontrada num artigo de Dominique Maingueneau (Citação e destacabilidade), publicado em Cenas da enunciação (S. Paulo, Parábola).

O leitor curioso deve ler esse texto. E esse livro.


Sírio Possenti é professor associado do Departamento de Lingüística da Unicamp e autor de Por que (não) ensinar gramática na escola, Os humores da língua e de Os limites do discurso.


Terra Magazine.


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